domingo, 27 de agosto de 2023

Vermelho

Meu avô tinha a pele perfeitamente vermelha.

Pele indígena, pele vermelha.

Os olhos eram ligeiramente puxados. E o nariz pequeno.

Rosto largo e a cabeça era enorme. Cearense.

Que coisa linda era ele. Um assombro.

Você nunca viu tanta força numa pessoa só.

Eu vi.



Começo

Quase tudo pode ser escrito sobre você. Que foi genial, crucial, fatal, a grande maioral. 

Eu estava lá e vi também. Você era tudo isso mesmo. 

E é por conta disso que tudo começa em você. Tudo sim.

Se eu estou aqui, fui pra ali, voltei pra lá.

Vamos ser sinceras? Meu sonho era ser você.

Eu vou ser você. 

Eu não vou ser você.

Ser você é ser quase tudo. 

E que você seja sempre.

segunda-feira, 14 de agosto de 2023

Seguimos

Ninguém pode saber onde dói. 

Ninguém, ninguém, ninguém.

Se souberem, dói mais. 

Sabia disso?

Não deixe nunca que saibam. 

Não deixe mesmo.

Vai doer mais.

E isso você não quer.

//

Sabe como faz para não doer?

Deixa lá, guardadinho.

E não olha mais pra lá não.

Só funciona se não olhar.

Consegue fazer isso?

Então, vamos. 

Sem doer.

Você e eu.

//

Já faz dez anos agora e não olhamos.

Seguramos muito o ar e não olhamos.

Eu poderia segurar esse ar dez, vinte, trinta anos mais.

Porque não quero que doa nunca. 

Nunca mesmo.

//

Parece seguro respirar agora.

Agora que tudo acabou.

Quase no fim foi difícil não olhar. 

Mas conseguimos.

Não doeu, ou pelo menos não que a gente tenha percebido.

//

Somos mais fortes e mais espertos. 

Sem ar seguimos.





Perto

Precisa chegar muito perto das coisas para escrever sobre elas.

Tem que ter muita, mas muita coragem, para chegar muito perto das coisas.

É doido quem chega muito perto das coisas.

Eu, por exemplo, gosto de ficar bem longe. 

Na minha segurança daqui.

E por isso não escrevo.

Quando escrevo, é que cheguei um tanto mais pertinho.

Mas logo escapo.

Por exemplo, agora.

Fui.

Vazio

Eu não fiz nenhum poema para ele.

Tem gente que seca a fonte. 

Ele secou.

Mas vou deixar esses versinhos. 

Até mesmo para registrar que tem gente que seca a gente.

E disso a gente não pode esquecer.


Criança

Agora que sou mãe, sou mãe. 

Agora que você é meu filho, tenho um filho. 

Parece tudo um tanto óbvio e direto. 

Mas por que falta tanto? 

Se sou mãe, sou mãe. 

Se você é meu filho, tenho um filho. 

Mas por que não faz sentido? 

Mãe, filho. 

Filho, mãe. 

Acontece que eu também sou filha. 

E eu também tenho mãe. 

Nesse balaio de gato, sou tanto filha quanto sou mãe. 

Sou outras coisas também, um infinito delas.

Agora entendo que não sou só mãe. 

E agora entendo que você não é só meu filho. 

Eu sou mais, você é mais. 

Infinitamente mais.


Resultado

Sua cabeça, eu vejo, não desliga. É conta, conta, conta. 

Não adianta tentar somar. É zero mesmo o que restou.

Você vai morrer. 

Pode parar de calcular. 

E o resultado não é bonito. 

Sua família vai te ver indo embora nas piores circunstâncias .

Sem amor, sem admiração, sem uma gota de dignidade. 

Com que coragem você deixa a Terra?

Nenhuma, eu sei. 

Eu queria te dar uma colher de chá e sussurrar no seu ouvido que você pode ir em paz.

Não pode, né. Mas finge que pode.

Eu podia te dizer que vamos todos ficar bem e que você fez o que pode. 

Não fez, né. Mas finge que fez.

E o que sobra para mim? 

O meu resultado até que não é ruim.

Mas é, né. 

Enfim. 

Finge que não é.