quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

Encontros

Quem quer, sabe me encontrar.

Não é tão difícil, eu não me mexo muito.

Só parece, mas eu sigo por aqui. E vou seguindo.

Talvez essa seja a questão. Vocês todos, se mexendo.

E eu sigo.

Vocês mudam, passam, esquecem.

Eu não faço isso.

Também não faço outras coisas.

Não me recordo, não me enraizo, não volto atrás.

Eu só fico. Aqui.

É bom aqui.

Adulta

Meu pai morrendo no hospital, completamente frágil, totalmente fraco, francamente desequilibrado.

Pede um banho. Eu dou. 

Dou apoio, entrego o sabonete.

Evito olhar demais.

Desligamos a água e ele sai do boxe.

"Pega a toalha, me enxuga", eu enxugo.

Com o pano, esfrego sua cabeça, seus braços, suas pernas. 

A bunda.


Minha mãe, vinte anos depois de tudo. Me chama para jantar.

Saímos para um restaurante, eu, ela, minha irmã, nossos filhos.

Na mesa, também está sua melhor amiga.

Muito amigas, de longa data, minha mãe e ela dividiram de tudo.

Segredos, lembranças, amores, pecados, tristezas, linhas de pó. Muitas linhas.

A amiga pede cerveja. Só para ela, minha mãe há muito está sóbria.

"E você? Quer um copo?", eu bebo.

Sem medo.


Limpo bunda. Sem medo.

Bebo cerveja. Sem medo. 

Acho que isso é ser adulta.


domingo, 27 de agosto de 2023

Vermelho

Meu avô tinha a pele perfeitamente vermelha.

Pele indígena, pele vermelha.

Os olhos eram ligeiramente puxados. E o nariz pequeno.

Rosto largo e a cabeça era enorme. Cearense.

Que coisa linda era ele. Um assombro.

Você nunca viu tanta força numa pessoa só.

Eu vi.



Começo

Quase tudo pode ser escrito sobre você. Que foi genial, crucial, fatal, a grande maioral. 

Eu estava lá e vi também. Você era tudo isso mesmo. 

E é por conta disso que tudo começa em você. Tudo sim.

Se eu estou aqui, fui pra ali, voltei pra lá.

Vamos ser sinceras? Meu sonho era ser você.

Eu vou ser você. 

Eu não vou ser você.

Ser você é ser quase tudo. 

E que você seja sempre.

segunda-feira, 14 de agosto de 2023

Seguimos

Ninguém pode saber onde dói. 

Ninguém, ninguém, ninguém.

Se souberem, dói mais. 

Sabia disso?

Não deixe nunca que saibam. 

Não deixe mesmo.

Vai doer mais.

E isso você não quer.

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Sabe como faz para não doer?

Deixa lá, guardadinho.

E não olha mais pra lá não.

Só funciona se não olhar.

Consegue fazer isso?

Então, vamos. 

Sem doer.

Você e eu.

//

Já faz dez anos agora e não olhamos.

Seguramos muito o ar e não olhamos.

Eu poderia segurar esse ar dez, vinte, trinta anos mais.

Porque não quero que doa nunca. 

Nunca mesmo.

//

Parece seguro respirar agora.

Agora que tudo acabou.

Quase no fim foi difícil não olhar. 

Mas conseguimos.

Não doeu, ou pelo menos não que a gente tenha percebido.

//

Somos mais fortes e mais espertos. 

Sem ar seguimos.





Perto

Precisa chegar muito perto das coisas para escrever sobre elas.

Tem que ter muita, mas muita coragem, para chegar muito perto das coisas.

É doido quem chega muito perto das coisas.

Eu, por exemplo, gosto de ficar bem longe. 

Na minha segurança daqui.

E por isso não escrevo.

Quando escrevo, é que cheguei um tanto mais pertinho.

Mas logo escapo.

Por exemplo, agora.

Fui.

Vazio

Eu não fiz nenhum poema para ele.

Tem gente que seca a fonte. 

Ele secou.

Mas vou deixar esses versinhos. 

Até mesmo para registrar que tem gente que seca a gente.

E disso a gente não pode esquecer.